Aspectos psicológicos coringa

Coringa é um prato cheio à Psicologia. Como psicóloga e fã do emblemático vilão em quadrinhos do Batman, neste texto irei expor minha opinião sobre aspectos psicológicos do filme relevantes, ao meu ver, à Psicologia. Então se você não quiser ter spoilers (estragar a surpresa do filme) assista primeiro e volte para ler depois.

O filme faz uma leitura sobre este complexo personagem, “Coringa”, interpretado pelo ator Joaquin Phoenix e dirigido por Todd Phillips. Retrata uma visão mais humana e insana ao mesmo tempo, ao expor de forma gradual a enxurrada de desastres pessoais de Arthur Fleck que nos faz inicialmente empatizar com o sofrimento deste, que ao invés de cair em um tanque de produtos químicos, é adotado e fruto de uma sociedade tóxica.

O vilão, mostra com detalhes sofrimentos de diferentes escalas, na infância vítima de violência doméstica (comportamento violento de um familiar contra outro) causado por diferentes namorados da mãe, muitos golpes na cabeça e espancamentos que possivelmente agravaram ou até lhe ocasionaram o transtorno neurológico “risada patológica” também conhecida como afeto pseudobulbar ou labilidade emocional, sequela que causa grave dificuldade de controlar as expressões emocionais, com acessos de riso ou choro de forma involuntária, o que muitas vezes causa desconfortos sociais.

Um caso que fere a integridade na infância e que em nosso contexto local, deveria ser identificado e atendido pelo conselho tutelar, direcionado ao ministério público e sistema de justiça, e muito provavelmente seria encaminhado para um serviço de acolhimento para crianças e adolescentes, instituição que acompanha casos que ferem os direitos da criança e do adolescente conforme o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Cabe aqui este parêntese em defesa às políticas públicas, pois tanto na realidade, quanto na ficção de "Coringa", o enfraquecimento e desvalorização destas gera efeitos negativos para o desenvolvimento infantil.

Uma relação com a mãe norteada pelo duplo vínculo, à medida em que ele cresce internalizando o delírio materno acreditando ser uma pessoa que nasceu para trazer alegria ao mundo e fazer as pessoas sorrirem, sendo que em diferentes momentos a mãe questiona sua competência como comediante uma vez que seria importante ser engraçado, se contradizendo e estabelecendo uma relação de duplo vínculo, frágil e ambígua. Outra contradição é que ele introjeta (absorver plenamente como parte de si, qualidades inerentes de outro) tal delírio (convicção que não muda mesmo quando confrontado à luz de evidências conflitantes) com alto grau de convicção, mesmo sabendo que nunca foi feliz um só dia de sua vida.

Dentre outros sucessivos traumas (marco de profundo sofrimento psicológico) ao longo da vida, mesmo na fase adulta, houve a interrupção e a falta de suporte do tratamento de saúde mental, que por razões políticas sofreu cortes de verbas públicas. Tratamento este, que no filme mostrou raso comprometimento e envolvimento tanto por parte da profissional de saúde, quanto por parte da política de assistência. Uma crítica bastante atual e triste também da realidade brasileira além da de Gotham City.

Um momento chave na continuidade da trama foi o primeiro assassinato cometido por Arthur, dos três Yuppies (playboyzinhos/filhinhos de papai), ocasião de gatilho que fez cair por terra as frágeis barreiras psíquicas que mantinham Arthur num convívio tênue com as normas sociais, início de cisão (mecanismo de defesa) ao alimentar em Arthur uma sensação de destaque, poder e notoriedade, ao passo que este crime incita e alimenta uma revolta social em Gotham City. Após o crime, Arthur expõe à profissional de saúde mental que o acompanha esta sensação de identificar-se com o que a mídia dizia ser status social (funções que um sujeito pode ocupar) e nasce para Arthur a acepção de uma espécie de justiceiro como possível novo status quo (sentir-se no exercício de direitos e deveres que uma pessoa tem ao ocupar um determinado status social).

A mãe que também escondia do filho seu próprio diagnóstico de psicose delirante (distorção do senso de realidade, inadequação de equilíbrio entre pensamento e afetividade) e vivia à parte em sua própria realidade acreditando fixamente que o filho adotivo Arthur era fruto de uma relação fantasiosa com o ex patrão Thomas Wayne. Ao descobrir a verdade sobre a hipótese diagnóstica da mãe e seu histórico de infância, Coringa a mata demonstrando grande alívio e desapego, em profunda dissociação, demonstrando sua aflorada e não tratada psicose, desesperança (profunda desilusão) e falta de compaixão na sociedade em que vive sentindo autopiedade, como se pudesse matar em si mesmo sua própria história de Arthur e dar mais espaço ao Coringa.

O auge da tragédia de Arthur foi a morte de duas figuras paternas antes mesmo dele concretizar o assassinato de uma delas. Sendo a primeira figura paterna Murray (apresentador do Talk show) que o expõe em cadeia nacional dizendo que Arthur não era engraçado. Coringa se sente humilhado e agredido e assim dentro dele morre a figura paterna que ele tanto idolatrava e cultivava. Dentro do contexto de sua fragil auto-imagem e idealização fantasiosa, quem faz assédio moral (ato de humilhar, constranger, ofender e atacar a dignidade de outra) é Murray.

Uma fala seguida da ação do Coringa que incita extravasar a agressividade de dentro dele, e que também o torna ícone de uma espécie de revolução é a seguinte:

“o que você ganha quando cruza um doente mental solitário com uma sociedade que o abandona e o trata como lixo” ... “eu te digo o que você ganha. Você ganha o que você merece, c@r5&#o” (seguido do assassinato de Murray).





O filme não foi feito para incitar à violência. É uma obra, e como tal, o público deve assistir e interpretar mediante a singularidade de cada espectador. Concordo plenamente com o ator Phoenix, que atuou como Coringa que as pessoas podem interpretar letras de músicas, livros ou filmes de maneira equivocado e não é papel no cineasta ditar o que o público deve entender, logo é possível, mas reducionista, relacionar que o personagem “Coringa” é um “santo padroeiro dos incels” criando possível identificação entre o personagem “Coringa” e um perfil de homens intitulados de incel - celibatário involuntário - homens que querem ter relações pessoais e sexuais com mulheres, mas não conseguem em razão de possuírem grande dificuldade para se relacionarem com estas e retornam esta dificuldade para si em forma de auto piedade e para o externo na forma de ataques e idealizações da figura feminina. Variando de comportamentos negativos mais amenos como: exposição vexatória; doxxing (prática virtual de pesquisar e expor dados privados sobre um indivíduo ou organização) até comportamentos mais extremos como de stalking (perseguição nem sempre virtual), e planejamento de assassinatos coletivos. Não verifiquei estatísticas quanto a este perfil incluir feminicídios e estupros porque há realmente uma inadequação sexual de aproximação à mulher.

Da mesma forma que outras obras também poderiam ser um gatilho a tantas outras questões sérias que também devem ser discutidas, problematizadas e questionadas socialmente por serem preocupantes, delicadas e atuais. E tal como Coringa, sendo o personagem fruto de uma sociedade tóxica, exaltar em qualquer tipo de notoriedade a uma figura insana pode também, retroalimentar insanidades humanas nos telespectadores comprometidos de perturbações reais em razão da fragilidade do humano que habita em cada um de nós. É por isso que construímos heróis para nos salvar da nossa própria sombra (tudo aquilo que não aceitamos como parte da nossa personalidade).

Vem cuidar da sua insanidade também.






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